A queda de Murdock: Ascenção do Demolidor
Prelúdio:
O ano é 1985. No Brasil, vivemos os
primeiros momentos da nova república pós ditadura. Toda novidade ainda é vista
com certa desconfiança. A cultura dos quadrinhos vive seu auge nessa época de
ascensão para os heróis fantásticos e superpoderosos. Enquanto isso, nas terras
do Tio Sam, o mercado editorial de comic-books vive uma de
suas maiores revoluções até então: a DC comics, em um mega evento decorrido ao
longo de um ano e no qual foram envolvidos todos os seus personagens, reformula
completamente as bases de seu universo. Crise nas Infinitas Terras mudou para
sempre a dinâmica das histórias em quadrinhos.
Após Crise, o mercado traçou novos
rumos. A fórmula previsível e ingênua de se escrever quadrinhos foi deixada
para trás no intuito de agradar a uma nova geração de leitores. As
plurivivências absurdas dos personagens em incontáveis realidades paralelas
foram extintas para que se priorizassem histórias mais lógicas e com algum
fundamento científico. Os heróis seriam humanizados para que o leitor pudesse familiarizar-se
com eles. A iniciativa da DC funcionou e seus heróis, outrora agredidos
pelo tempo e pela incompetência de alguns roteiristas e editores, ganharam vida
nova e muitas cifras.
Do outro lado do mercado de quadrinhos, a Marvel
Comics, concorrente direta nesse segmento, percebendo o bem sucedido apelo da
DC, preocupa-se em também em dar um upgrade em sua grade de personagens.
Histórias muito bem elaboradas são criadas nesse período e, entre elas está “DareDevil:
Born Again”, traduzido no Brasil como: “Demolidor: A queda de Murdock”.
O Toque de (Midas) Miller
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Anos 80: O Demolidor e Electra sob o lápis de Miller. |
Desde sua criação em 1964, por Stan Lee e Bill
Everett, o Demolidor sempre foi um personagem de segundo (às vezes
terceiro) escalão. Um jovem advogado cego, nascido no pior bairro de Nova York,
cujos sentidos foram espantosamente ampliados pela radiação, razão também de
sua cegueira, após salvar um homem de ser atropelado por um caminhão de resíduo
tóxico. Apenas isso. Sem poderes fantásticos como voo ou super força.
Seria impensável comparar sua popularidade à do Homem-Aranha, por exemplo. Apenas quando o jovem Frank Miller, em 1979, assume os desenhos, vemos
uma arrancada no sucesso do personagem. Apesar de estar ainda no segundo
ano de sua carreira como profissional, Miller traz ao título mudanças significativas.
Seu desenho anatomicamente soberbo (já quanto à perspectiva, cenários e tal...
nem tanto) agrada aos fãs do herói.
A alavancada nas vendas faz com que os
editores concedam ao jovem artista controle total sobre o título, assumindo
também os roteiros. Miller permanece no comando do demolidor até 1983. Ao fim
desse período, o vemos experimentando seu gênio criativo ao lado do consagrado
roteirista Chris Clearemont (Conhecido por salvar o título “X-Men” de ser
cancelado) em uma minissérie em quatro edições para o personagem Wolverine,
numa história que serviu de inspiração para o recente longa-metragem “Wolverine
Imortal”.
Algum tempo depois, já na DC comics,
Miller cria “Ronin”, uma minissérie não tão bem sucedida, mas ainda de relativo
respaldo entre os admiradores do artista.
Ainda na DC e já bem mais maduro,
Frank Miller traz ao mundo aquela que, até hoje, é tida como a sua nona
sinfonia: “O cavaleiro das trevas”, história criada para atualizar o Batman
para o mundo pós Crise. Em seguida, o vemos ao lado do desenhista David
Mazzuchelli escrevendo "Batman Ano Um", que reconta a origem do
personagem. Mas esse não foi o início da parceria entre Miller e Mazzuchelli.
Quando um cego contempla o inferno
De volta à Marvel, de volta ao Demolidor, o artista recebe o desafio de
ressuscitar novamente o herói com o seu toque particular. A proposta é aceita
com uma condição: que a arte continue sob responsabilidade de David
Mazzuchelli, sobre o qual Miller diz ser “apaixonado pelo seu desenho”. Eis
que, ainda em 1986 (sim, tudo isso aconteceu em apenas um ano) É lançado “Born
Again”, um ciclo de sete edições onde o herói cego da cozinha do inferno
(bairro onde nasceu) é levado ao limite de sua sanidade.
Quando Miller deixou o título do
demolidor em 1983, as coisas começaram a desandar. Mesmo em mãos capacitadas
como as do roteirista Denny O’Neil e com o ótimo desenho de Mazzuchelli, as
histórias não vingavam. O público parecia acostumado ao estilo Miller de
escrever. Pois bem, ele estava de volta. E qual a ideia? Para ressuscitar o
herói depois de um longo período de fracassos editoriais, Frank Miller e David
Mazzuchelli apelam para uma jogada extrema: “Vamos destruí-lo!”. E é
simplesmente isso que é feito com a personagem. O homem sem medo foi reduzido a
cinzas.
Tudo começa quando Karen Page, ex-secretária e ex-namorada de Mattew (Demolidor) Murdock, vende o segredo de sua dupla identidade por uma dose de heroína. Karen havia
desaparecido anos atrás, após romper com Matt. Para todos os efeitos, ela
conduzia sua carreira de atriz em Hollywood. No entanto, sua busca pelo sonho
americano não rendeu nada além de alguns papéis em filmes pornôs e o vício em
drogas. De cara, este é o primeiro indício da genialidade de Miller:
introduzir, logo nas primeiras páginas, uma personagem há muito esquecida pelos
leitores, fazendo desta um estopim para uma série de acontecimentos brutais ao
longo da história.
A atitude de Karen, como já era de se
esperar, surte efeitos devastadores na vida do herói. Seu segredo vai parar nas
mãos de seu arqui-inimigo, Wilson Fisk, vulgo Rei do Crime, o maior gângster da
cidade de Nova York.
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Assinatura. O rei explode a casa de Matt. |
De posse de uma arma tão letal, Fisk
poderia facilmente matar Murdock e pôr um fim à sua rivalidade. No entanto, o
vilão prefere afundar o homem antes de derrubar o herói. Sem que se dê conta,
Matt Murdock vê sua vida ruir. Escândalos profissionais são forjados, seus bens
bloqueados pela receita, até mesmo a hipoteca de sua casa é fraudada. Antes, um
jovem bem sucedido, um dos mais respeitados profissionais de sua classe, Matt
se vê lançado em um turbilhão de situações extremas que o levam à beira da
loucura. Como que num grand finale para o primeiro ato desta
ópera diabólica, sua casa explode frente aos seus olhos. Obra do Rei.
Nos capítulos seguintes, vemos um homem
em frangalhos. Literalmente na sarjeta, Matt Murdock luta contra si mesmo,
tentando manter a pouca sanidade que lhe resta focada no intuito de confrontar
Fisk e ter sua vida de volta. Cada personagem da trama se vê envolvido em um
intenso drama psicológico. Foggy Nelson, melhor amigo de Matt e seu
sócio no escritório de advocacia, tem de lidar com os surtos de insanidade e
mania de perseguição do colega. Sua namorada, Glorianna O’Breen (Glory), se
vê obrigada a pôr um fim ao relacionamento em decorrência da injustificada
ausência de Matt. Pouco depois, Glory, acaba se
envolvendo com Foggy. Ben Urich, repórter do Clarim Diário, ao
tentar provar a inocência do amigo injustiçado, acaba tornando-se alvo das
investidas do Rei do Crime, tendo sua vida e a de sua esposa constantemente
ameaçadas. Karen Page, agora, além de ser atormentada por sua consciência,
sofrendo por ter destruído a vida do único homem que amou, precisa fugir dos
capangas do Rei, incumbidos de eliminar qualquer um que compartilhe do segredo
de Murdock.
A trama é conduzida magistralmente.
Enredo e arte se encontram em tamanha sintonia que, cada quadro, ainda que se
ignore as legendas, parece induzir o leitor a articular aquelas mesmas
palavras. Os diálogos de Miller, em especial os monólogos, são de uma beleza
quase lírica. De mesmo modo, arte de Mazzuchelli impressiona por sua perfeição.
Seu estilo, extremamente acadêmico, mas que, por vezes, permite lá seu
exageros, seduz o leitor, induzindo-o a mergulhar na história como se a
presenciasse de fato.
A partir do segundo capítulo, vemos um
herói demolido. No início do fim, Murdock passa a agir como sugere sua alcunha
de vigilante (Daredevil): um audacioso demônio, enfurecido, confuso,
enlouquecido pelas circunstâncias. Aos seus olhos, todos são inimigos, todos
tramam em prol do seu fracasso. Mas uma coisa já lhe é clara. Um rosto se faz
nítido: o rosto de Wilson Fisk. Matt sabe que tudo o que se passa em sua vida
reflete o modus operandi de um grande mafioso. O maior deles.
Alimentado apenas por sua ira, ele se move através da cidade como um mendigo
faminto até alcançar o covil de seu inimigo. Em uma cena que não pode ser
descrita como uma luta, mas sim como um massacre brutal, o Rei do Crime
finaliza sua empreitada destruindo a segunda metade de seu inimigo. O herói
está em pedaços. O homem também.
Após ser surrado pelo Rei do Crime e "sepultado" nas águas do rio a leste de Nova York, Matt sobrevive para
viver os piores dias de sua vida. Humilhado e destruído de todas as formas
imagináveis, às portas da morte, ele encontra redenção. Uma voz voz familiar e
braços igualmente familiares e acolhedores o resgatam. Os mesmos braços que acolheram quando criança, após o acidente que o
deixou cego. A zelosa irmã Maggie seria a resposta para a questão do paradeiro de sua mãe?
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Maggie mais uma vez a acolher Matt. Pietà? |
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Renascido? Até o título do quarto capítulo remete à ideia de uma cena sacra. No lay-out, a disposição dos objetos em cena parecem formar um cruz com Matt ao centro |
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Ben Urich em sua cena mais dramática. |
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Karen e Matt finalmente se reencontram. |
São claras as referências a imagens sagradas do catolicismo, como no momento em que o conjunto dos objetos em cena parece formar uma cruz tendo Matt ao centro e Maggie a consolá-lo (imagem acima). Como já dito, por mais acadêmico que se mostre o desenho de Mazzuchelli, é quando ele se permite a tais liberdades que mais temos a oportunidade de contemplar cenas memoráveis. O exemplo perfeito, e um dos momentos mais tensos da trama, seria quando Ben Urich, ao telefone da redação do jornal, acompanha sob ameaças o assassinato de um policial. Podemos notar o rosto de Urich deformar-se de espanto, chegando ao ponto de, no último quadro, ser a representação fiel da pintura impressionista "O Grito" de Edvard Munch.
Recuperado, Matt tenta recomeçar sua vida do zero. Agora, com a mente clara, seus passos são lógicos e bem definidos: primeiro, reestabelecer-se; depois, vinga-se. Muito acontece a partir daí. Karen finalmente o encontra e ao pedir perdão por ter lhe tirado tudo, ouve apenas: "Eu não perdi nada".
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Em meio ao caos, o Capitão surge para auxiliar o homem sem medo. |
Mas isso ainda não é o fim. Ciente de que seu oponente escapou da morte, Wilson Fisk, agora enfurecido e privado da razão, numa manobra de demasiada violência, ordena um ataque à cozinha do inferno, certo de que chamará a atenção do herói. Um insano soldado ufanista, transforma o lar do demônio desafiador em um inferno de fato.
Tem início uma verdadeira guerra. Patriotismo e brutalidade se confrontam quando um aliado de enorme valor aparece para auxiliar o renascido Demolidor.
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O reencontro e o perdão. |
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O diálogo diz tudo. |
“Born Again” foi criado no intuito de,
literalmente, desconstruir o homem sem medo. Levando-o à beira da loucura e,
posteriormente, às portas da morte, Miller pretendia trazer de volta o herói
com um novo fôlego. E deu certo. Sua ressurreição editorial foi uma das mais
notáveis já vistas. Até hoje, a história é aclamada por crítica e fãs como a melhor fase
do Demolidor, quiçá, uma das mais célebres sagas das histórias em quadrinhos. A
razão para tanto? Fácil: Miller fragiliza o personagem ao extremo, expõe tudo o que
há de mais humano no herói. Seus sentimentos, responsabilidades
profissionais e pessoais, tudo é posto em xeque ao passo em que ele, Matt
Murdock, caminha para a ruína. O fim do último capítulo, ao contrário do que se
poderia esperar, foge ao consagrado clichê “herói derrota vilão e contorna
totalmente a situação”. Em vez disso, vemos um novo homem caminhando para o
início de uma nova jornada. Ele há de se reerguer, mas jamais será o mesmo.
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No fim, um novo começo. |