Sem dúvida, o erotismo constitui-se como marca de leitura na literatura ocidental e latino-americana. E o homo-erotismo se revela como lugar de enunciação em seus gestos e práticas investidos na legião livre da existência. Como um olhar que registra as vias urbanas, este mesmo olhar flagra os contatos homossexuais entre e com homens demarcados no disparate, tendo como medida as experiências on the road. (GARCIA, Paulo César. 2008).
Narrativa pós-moderna ousada e cativante, Berkeley em Bellagio foi
mais que um novo trabalho; foi uma releitura de toda obra nolliana. Mais uma
vez, como em A fúria do corpo (1981), a velha
personagem ao estilo outsider é inserida na trama: expatriado
por opção, residente das rotas internacionais, o João (este, personagem), homem
de certa idade, intelectual, escritor homossexual, gaúcho de Porto Alegre, em
muito se confunde com aquele João, o autor, de certa idade, intelectual,
escritor homossexual...
Capa de Berkeley em Bellagio (2003, ed. Francis). |
No percurso entre cortinas empoeiradas e o cascalho dos campos de
Bellagio, surge a questão: qual a razão primordial para o elemento homoerótico
em Berkeley em Bellagio? A riqueza criativa da obra de Noll se
manifesta de forma violenta: o que de início parece ser um romance no mais
banal estilo sex pocket book, revela um fundo politizador ao
inserir uma minoria marginalizada nas rodas intelectuais de renomadas
instituições acadêmicas. O homossexual, vítima de toda sorte de ofensas morais
e físicas, aqui se mostra dominador de um certo espaço, na Universidade da
Califórnia, onde ensina aos jovens frequentadores do Mcdonald’s um pouco sobre
cultura brasileira.
Fez três vezes em vinte dias Porto Alegre – São Paulo – Porto alegre de ônibus rumo ao consulado americano. Dinheiro emprestado, levando recortes de jornais comentando seu período como escritor residente em Berkeley, agora como futuro professor convidado, dando cursos sobre Clarice, Graciliano, Raduan, Caio, Mirisola e alguns outros, mais alguns cursos sobre MPB, quando ele cantava, ele que gostava de cantar desde pequeno, cantava sobretudo bossa nova e tropicália como um emissário de pérolas brasileiras que os alunos americanos pareciam receber com a efusão conveniente às melhores notas – para depois de formados poderem operar as mais produtivas relações internacionais para o país deles controlar melhor o cosmos. (NOLL, 2003. p. 14).
João (o autor) em muito se confunde
ao João (a criação).
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Segundo Foucault (2005), “A afetividade, o amor, o desejo e a
relação sexual intersubjetiva assumem, na sua visão, importância positiva
quando manifesta a si mesma as relações afetivas com o outro”. Noll envolve
suas personagens em uma teia de desejo e sentimentalismo onde um, quase sempre,
é decorrente do outro. A forma terna como João descreve, em detalhes, as mais
explícitas cenas de envolvimento sexual, cenas estas que seriam sumariamente
rejeitadas em outra narrativa, prende o leitor de modo a fazê-lo esquecer (ou
ignorar) o fator homossexual ali contido. O execrável se torna contemplável. O
sujo torna-se o poético. O tabu faz-se totem.
A atmosfera ingênua, gerada pelo vilarejo de Bellagio, assim como a
tranquilidade aparente do campus da Universidade da
Califórnia, podem ser tomadas como elementos contribuintes para a visão terna
que circunda cada palavra de cunho mais sexualmente agressivo.
Quando saiu a conhecer o vilarejo de Bellagio, não conseguiu ver o que esperava encontrar numa aldeia italiana típica de filmes como ‘Cinema Paradiso’, ‘O carteiro e o poeta’; não via como dali poderiam sair histórias autenticamente pessoais, dramas, humor, malícia, tédio (NOLL, 2003. p. 21).
Cinema Paradiso |
Já “O carteiro
e oPoeta” (Il Postino/The Postman, 1994), dirigido por Michael
Radford, narra uma fictícia história de amizade entre o poeta chileno Pablo
Neruda, exilado na Itália nos anos 50, e um camponês analfabeto,
o qual Neruda alfabetizará, teoricamente para que este conquiste o amor da bela
Beatrice. Na verdade, ao “educar” o jovem camponês, Neruda insere no indivíduo o
conhecimento de sua condição enquanto membro de uma comunidade, tornando-o um
ativista entre os conterrâneos. Berkeley em Bellagio se
enquadra nesse mesmo status de falsa displicência. Enquanto que, à primeira
vista, é um romance sem maiores pretensões, na medida em que o leitor se
aprofunda no enredo e no universo do João (o autor e a personagem), descobre
artifícios utilizados para gerar um sem fim de possibilidades
argumentativas.
Até mesmo a paranoia americana, vivida em sua máxima intensidade no
período imediato à destruição de um certo ícone do capital, tem sua vez durante
as caminhadas noturnas entre os campos de Bellagio ao som do cascalho sob os
pés:
Continuei ouvindo o cascalho, alguém se aproximava e devia ser por trás. Custei um pouco a me virar. Estar entre americanos é jamais abordar quem quer que seja com um olhar inoportuno, como se todos estivessem vivendo às margens da paranoia e a todos se exigisse que não a provocassem o suficiente a ponto de se ultrapassar um limite além do qual já não se pode responsabilizar ninguém pelos seus atos. Tudo era medido quando não se estava bêbado, que todos se segurassem em seus casulos, não se aproximassem de ninguém além do que a Democracia Americana, a única, soberana, pudesse conter em seu código relativo aos “Direitos e deveres Dialógicos” Esse o patamar para além do qual a História se encolhia tanto a ponto de se cristalizar platônica, sem nada mais pra redimir, elaborar, viver. Era a torre do Novo Capital se erguendo, basta... (NOLL, 2003. p.40).
Enquanto se camufla nas vestes de um romance despretensioso que provoca
apenas por provocar, Berkeley em Bellagio vai abrindo portas
no subconsciente do leitor e lançando sobre si mesmo uma atmosfera que vai se
tornando gradativamente mais densa. Sua narrativa acelerada, dada em períodos
contínuos, sem divisão por capítulos tópicos ou tomos, contribui para uma
absorção frenética da trama. Essa estrutura de escrita acelerada é uma das marcas
pós-modernas escancaradas no estilo incisivo (para alguns, até um tanto
agressivo) de João Gilberto Noll.
Reafirmando a capacidade de Noll de toteimificar o profano, o sujo, ele
faz uso de uma normalização do incomum; o que para outros seria absurdo é
exposto, é tratado, é humanizado e torna-se o centro de uma esfera narrativa
incansavelmente provocante.
Ao ser pego abraçado a um colega no banheiro, abocanhando a carne de seus lábios, alisando seus cabelos ondulados, ele era o culpado – já o colega não, nem tanto; ele sim, apontado como o que desviara o desejo de outros jovens das “metas proliferantes da espécie”. Por que era ele o emissário de um mundo que os discursos dos padres condenavam ao silêncio sepulcral? Quem era ele afinal, por que se roía a ponto de o levarem para o Sanatório para ali se resolver impregnando-se de choques insulínicos, como se só na convulsão pudesse remediar um erro que ainda não tivera tempo de notar dentro de si? . (NOLL, 2003. p.22-23).
Se o homem é produto do meio, as personagens de Noll são produtos
arquetipificados de sua visão de como deveria ser o meio. Elementos complexos e
essencialmente humanos. Quase tangíveis em seus momentos de introspecção, suas
reflexões sobre o mundo e sobre si mesmos. É em meio a essa complexidade que o
autor concebe a suas personagens as ferramentas necessárias para fugirem ao
senso comum, tornarem-se ícones enquanto representantes de uma minoria.
Poucos autores conseguem levar a patamares tão dignos assuntos tão
polêmicos. No caso de Noll, a polêmica é também sua realidade, seu mundo, seu
estilo de vida. Fato esse que o aproxima ainda mais de sua obra, que lhe
concede ainda maior poder de desmitificar o tabu, fazendo da sua narrativa mais
que um elemento de inserção cultural e sim, um mecanismo de obliteração da
irracionalidade.