A lenda do Cavaleiro das trevas - Parte 1: A marca do "Bat-Man"


O "Batman"de 1966: de tão ridículo tornou-se cult.
"Santa baboseira maquiada, Batman!" Com frases como esta, o menino prodígio iniciava um diálogo sem nenhuma profundidade,  mas que fazia a alegria das crianças nas noites de terça e quarta-feira da extinta TV Paulista (mais tarde incorporada à Rede Globo-RJ). Nesses dias, ia ao ar a série televisiva "Batman", estrelada pelo ator Adam West - já conhecido por alguns seriados e pontas em filmes de faroeste -  no papel do homem morcego e Burt Ward como Robin. A estréia nos Estados Unidos se deu no início do ano de 1966, chegando ao Brasil no segundo semestre do mesmo ano. 
Capa de Detective Comics #38: 
Surge o Menino Prodígio.
A série foi alvo de muitas críticas dos fãs. Entre os motivos estava a péssima forma do ator principal, cujo o uniforme de lycra apertadinho não ajudava nem um pouco. Outro fator que foi ponto de convergência para o desgosto de muitos, foi o tom cômico, para não dizer ridiculamente caricato, dado às aventuras. Esse último, infelizmente, não foi culpa dos produtores do programa; a verdade é que as histórias do personagem nas HQ's já vinham ganhando ares mais leves fazia algum tempo. Preocupados com a aceitação pela crítica e, principalmente, pelos pais que compravam as revistas como uma diversão saudável para seus filhos, os editores foram pouco a pouco substituindo o personagem soturno e de poucas palavras surgido no final dos anos 30 por uma versão mais sorridente, defensora dos bons costumes ao velho estilo escoteiro (quase um Superman). para tanto, um dos primeiros recursos utilizados foi a inserção de um parceiro mirim na trama. Robin foi uma perfeita antítese à concepção inicial do Batman, a sacada definitiva para atenuar a obscuridade do personagem. O menino prodígio surgiu em 1940, na edição 38 da revista Detective Comics e já a partir daí se notava uma gradativa mudança de personalidade no Batman. Ou seja: Sinta-se à vontade para culpar o Robin!

Primeiro encontro com Robin: Batman ainda tinha cara de mau.


Mas, afinal, de onde surgiu o Batman?

Em março de 1937, saía a primeira edição da revista Detective Comics, título da National Allied Publications, editora pertencente ao Major reformado da Cavalaria Norte-americana Malcolm Wheeler-Nicholson e que mais tarde se tornaria a atual DC Comics. Como sugere o título, a revista focava-se em trazer histórias de detetives e aventuras policiais. Naquela época, publicações específicas de histórias em quadrinhos não faziam mais do que apresentar compilações de histórias já publicadas em tiras de jornal. No entanto a Detective Comics, assim como os demais títulos da National, apresentavam histórias inéditas, o que chamou a atenção do público. Entre essas novidades, na edição de nº 27 a revista deu à luz aquele que se tornaria um dos maiores ícones desse segmento:  The Bat-Man (como era grafado originalmente). 
FInger e o "Bat-Man" de Kane.
Em 1939, incentivados pelo assombroso sucesso do Superman criado no ano anterior, os editores da National entram numa busca por novos super-heróis. É aí que Kane e Finger entram: o ilustrador Bob Kane é o primeiro a desenvolver um esboço do que seria o Batman. Para criar seu personagem, inspirou-se principalmente no ornitóptero de Da Vinci, o filme "The Bat Whispers" de 1930 (um remake do filme: "The Bat " de 1926) e também o Drácula de Bela Lugosi, filme de 1931. No entanto, o resultado disso não foi muito agradável aos olhos. Kane apresenta a ideia ao seu parceiro, o roteirista Bill Finger, que faz várias modificações, dando ao esboço do colega aquilo que entendemos hoje como sendo O Batman. Para tanto, Finger abole de vez a ideia do ornitóptero, substituindo as asas de morcego por uma capa, remove a pequena máscara xadrez estilo Robin e em seu lugar insere um capuz, além de sugerir que substituísse a roupa vermelha por um tom escuro e lhe desse luvas, já que seria um detetive. Pronto: Eis o Batman! Indubitavelmente, também serviu de inspiração para a dupla o filme "A marca do Zorro" de 1920, com a clássica atuação de Douglas Fairbanks no papel principal. Não apenas o "look" de vigilante noturno, mas também o estilo de vida de D. Diego de la Vega serviram de inspiração para que Finger construísse seu personagem. O roteirista não queria conceber uma criatura com dons sobre-humanos, mas sim um homem que superasse a condição humana, utilizando para isso apenas a astúcia e os recursos ao seu dispor. Ironicamente, o Batman, em sua essência, lembra muito o Übermensch de Nietzsche, bem mais que o próprio Superman de Siegel Shuster.
Filme "A marca do Zorro", de 1920.

Muitos fãs consideram Finger o verdadeiro criador do homem-morcego. Não fossem suas intervenções no esboço de Kane e o meticuloso trabalho na construção psicológica do personagem, poderíamos ter hoje, em vez do homem morcego, um malfadado homem pássaro (havia rumores de que o projeto inicial cogitava a substituição do personagem por um tal "Bird-Man"). Mesmo tendo sido o pai do cavaleiro das trevas que conhecemos hoje, Bill morreu (1974) sem ser reconhecido oficialmente pelo seu trabalho. As leis editoriais da época atribuíram todo o crédito da criação do personagem a Kane, que apresentou sozinho o projeto à editora. Atualmente na indústria dos quadrinhos, quando se quer afirmar que um profissional foi injustiçado, utiliza-se o termo "Fingered". Bill Finger foi homenageado postumamente com o prêmio Will Eisner e conquistou lugar cativo no "Jack Kirby Hall of Fame”.

 A idade das trevas para o cavaleiro das trevas

Nos anos 1950 os quadrinhos estavam vivendo o seu ápice. As grandes franquias se popularizavam cada vez mais e novos títulos surgiam em ritmo frenético. Era a transição da era de ouro para a era de prata das HQ's. Foi nesse cenário que iniciou-se uma perseguição sem precedentes: convencido de que os chamados comic book's representavam uma ameaça à boa índole da juventude americana, o psicólogo Frederic Wertham desencadeou uma violenta perseguição às histórias em quadrinhos, processo iniciado ferrenhamente através de seu livro "Seduction of the innocent" de 1954, no qual o Dr. Wertham utilizava toda sorte de argumentos descabidos para reforçar o poder marginalizador dos personagens em questão. 

Àquela altura, o mundo inteiro já possuía motivos mais que suficientes para um estado de desconfiança total. A paranoia anti-comunista era uma constante, principalmente nos EUA. Figuras populares como Charles ChaplinFred Zinnemann,  Albert Einsteinentre outros, eram investigados pelo governo norte-americano, suspeitos de atividades anti-democráticas e, até mesmo, traição. Em 1947 havia sido criado, pelo então senador  Joseph McCarthy, Comitê de Atividades Anti-americanas, o qual se incumbia de investigar e punir tais atos de transgressão. O caso mais famoso certamente foi o do casal Julius e Ethel Rosenberg: acusados de alta traição por terem fornecido à União Soviética o segredo da bomba atômica, os dois foram executados em 19 de junho de 1953. A decisão foi e ainda é questionada por inúmeros políticos, intelectuais e outras figuras públicas. Tomemos por exemplo o depoimento de Jean Paul Sartre na época do ocorrido: "Vocês americanos são coletivamente responsáveis por esse assassinato. Alguns por o terem patrocinado, e o restante, por tê-lo consentido. Vocês permitiram que os Estados Unidos se tornassem berço de um novo fascismo".
Sob esse clima de terror que predominava em terreno norte-americano, as ideias do Dr. Wertham soavam como um alerta de alguém preocupado com o futuro do país. Sua reputação era inquestionável, suas credenciais eram as mais altas imagináveis (mais tarde viria a se tornar professor na Universidade de Nova York e diretor da clínica de higiene mental do Centro Hospitalar Bellevue), ou seja: "Se o Dr. Wertham está dizendo, então é inquestionável" era a opinião geral. Nesse período, pilhas de revistas em quadrinhos eram queimadas em praça pública sob as mais diversas alegações: incentivo à marginalidade, homossexualidade, comunismo e até influência demoníaca. Os heróis dos quadrinhos tornaram-se os vilões da vida real, e dentre todos, o primeiro a ser crucificado foi o Batman.
Certamente, todos já ouviram, em algum momento, uma piadinha de cunho pejorativo a respeito da sexualidade da dupla dinâmica. O que poucos sabem é que esses boatos tiveram início com o Dr. Wertham, segundo o qual o estilo de vida de Batman e Robin representava o paraíso idealizado por qualquer homossexual: um milionário adota um garoto já em idade avançada e os dois vivem luxuosamente em uma bela mansão, cercados de flores e com um mordomo sempre a seu dispor.
Algumas vezes, Batman está de cama por causa de algum ferimento. Robin aparece sentado ao seu lado. Eles levam uma vida idílica. São Bruce Wayne e Dick Grayson. Bruce é descrito como milionário bon vivant e Dick como seu pupilo. Eles moram numa mansão suntuosa com lindas flores em vasos enormes. Têm um mordomo, Alfred. Batman aparece algumas vezes de roupão. Parece um paraíso, um sonho de consumo de dois homossexuais que vivem juntos. Às vezes aparecem num sofá. Bruce reclinado e Dick ao seu lado sem paletó e de camisa aberta. (WERTHAM, 1954).

Propaganda da época:
"Veja se o seu 'gibi' possui este selo".


 De acordo com essas afirmações, percebemos que O Dr. Wertham apoiava-se em signos visuais imediatos para embasar suas teorias. Assim sendo, independente da situação, os personagens deveriam estar sempre bem vestidos e não demonstrar qualquer sinal de sensibilidade (ou mesmo de humanidade). Infelizmente, tais argumentos eram convincentes para a sociedade da época.
Batman e Robin não foram os únicos a serem malhados. A Mulher Maravilha (criação do também psicólogo, Dr. William Moulton Marston, já famoso pela invenção do polígrafo), personagem surgida em 1941 como representação dos ideais feministas, era apontada ora como símbolo de subserviência sexual, ora como clara imagem do lesbianismo. As histórias policiais eram fiscalizadas rigorosamente, sendo vetadas a qualquer sinal passível interpretação de  de sexualidade, ocultismo, ideias comunistas ou violência demasiada. Nessa época, foi implantado o Comics Code Authority, criado pelos próprios editores de quadrinhos como forma de se auto-policiar aos olhos da censura. Nesse período, muitos títulos de horror, ação policial e mesmo romance foram cancelados ou drasticamente modificados para atender às novas exigências; os que eram publicados sob os padrões estabelecidos levavam na capa um selo de autenticação. Com o tempo, o código foi perdendo força e as editoras aos poucos foram libertando-se de sua influência, sendo oficialmente extinto no ano de 2011. 

Um comentário:

  1. Legal!!!
    Nunca imaginei que tivesse tanta história por trás de um gibi...

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